Uma Vida no Teatro
Francisco Cuoco e Ângelo Paes Leme fazem peça sobre o teatro
“O teatro e vida se misturam completamente, a ponto de você não saber exatamente com qual dos dois está lidando. É aquela coisa: a vida imita a arte. Ou será que é a arte que imita a vida?”. Essa reflexão foi levantada por Francisco Cuoco, em uma entrevista exclusiva para o Globo Teatro, mas poderia facilmente ser uma fala de Robert, seu personagem no espetáculo “Uma Vida no Teatro”. Com direção de Alexandre Reinecke, o experiente ator sobe ao palco para viver… um ator experiente. A peça, que faz temporada no Teatro Vivo, em São Paulo, narra a trajetória de dois artistas de diferentes gerações: Robert e John – vivido em cena por Ângelo Paes Leme.
O espetáculo escrito pelo dramaturgo David Mamet narra a trajetória desta dupla, que trabalhou junta durante um período de suas carreiras. Unidos pelo ofício, vivenciaram inúmeras situações típicas dos atores teatrais, como as inseguranças, carências, sucessos e fracassos em várias montagens.
– Este é um texto universal. É uma peça muito humana, que se comunica com qualquer pessoa. Assim que o li pela primeira vez, eu me apaixonei. Estamos falando de um dos maiores autores contemporâneos do mundo – explica Reinecke.
A metalinguagem pode ser considerada uma das características mais fortes deste espetáculo, que apresenta os bastidores do teatro para o público. Em cena, os dois personagens ensaiam juntos, relaxam no camarim, se preparam para as apresentações nas coxias, encenam uma peça e recebem o aplauso de um público fictício, localizado ao fundo do palco.
– É uma peça que retrata a trajetória de atores, algo que eu conheço muito bem. Essa relação entre artista e plateia, as críticas recebidas, os textos trabalhados. Esse universo é muito interessante e tende a conquistar a plateia – acredita Cuoco, que, ao longo de seus 50 anos de carreira, estudou na Escola de Arte Dramática de Alfredo Mesquita, estreou no Teatro Brasileiro de Comédia e integrou a companhia Teatro dos Sete ao lado de Fernando Torres, Ítalo Rossi, Fernanda Montenegro, entre outros.
Robert é um ator no auge dos seus 70 anos, com uma larga experiência nos palcos. Acumula manias, trejeitos, opiniões e inseguranças. Já John é um jovem e promissor artista. Graças a sua generosidade, está sempre disponível para ouvir o amigo mais velho e um tanto quanto carente. Tirando uma pequena diferença na idade, Francisco e Ângelo se identificam completamente com seus personagens.
– Com a maturidade chega a experiência. Sei que muitas vezes o ator não quer voltar para a realidade fora do teatro. Com a idade, você se apega mais à felicidade vivida ao subir em um palco e receber os amigos após um espetáculo. Ao longo da vida, passamos por momentos muito solitários – desabafa o ator, que hoje conta com a companhia de três filhos e a mulher Thaís Rodrigues. – Quando não estamos fazendo os personagens da peça que encenamos, é realmente o Ângelo e o Cuoco que estão em cima do palco. Nosso trabalho está perfeitamente afinado.
Ângelo concorda:
– O John é um ator que está aprendendo, mas que tem a juventude ao seu lado. Ele tem um gás, uma energia e um entusiasmo muito forte. É nisso que eu me identifico, apesar dele ser um pouco mais novo do que eu. O fazer teatral dele é parecido com o meu – explica o ator, que finalizou as apresentações de sua última peça, “A Confissão” há dois meses. – Está sendo um trabalho muito prazeroso. Trabalhar com o Cuoco é incrível, pois ele é um homem muito generoso. Eu tenho exatamente a metade da idade dele, então a peça acaba se tornando um retrato da nossa própria relação.
Com tanta semelhança entre ficção e realidade, é impossível não perguntar a Cuoco: afinal, foi uma vida no teatro?
– Sim, claro. Está sendo, na verdade (risos).
‘Uma Vida no Teatro’ traduz Francisco Cuoco
Nyldo Moreira
“Uma Vida no Teatro” é o jargão mais típico e fiel a um ator. Um ator, que permeia sua carreira na arena, não poderia ter um lar mais assíduo do que a arena. É nela que o ator encontra seus leões, crava suas espadas e ajoelha-se na terra. É nessa arena que aquele que dobra-se não a abandona, só na morte. É lindo ver uma peça que fala das peças, um ator, ou melhor, dois atores, que falam um do outro. “Uma Vida no Teatro”, dirigido por Alexandre Reinecke, encharcando texto na boca de Francisco Cuoco e ngelo Paes Leme.
Um ator tem um machado siamês na cabeça, que divide-o a todo instante, jogando, por vezes, na sarjeta a própria vida e permitindo-o viver apenas o outro. O ator é o outro! Pouco é ele mesmo. O ator é reverenciado por ser o outro. É um médium, que expulsa seu espírito e engorda-se de um outro, aquele que está escrito num papel. Num calhamaço de papéis.
Essa interpretação escorre da graça e do impecável humor de David Mamet, na tradução de Clara Carvalho, sobre o texto em questão. Cuoco e Leme são eles, e não são. Tal qual dois atores vivendo dois atores. Um ator interpreta para ser interpretado.
Eles vivem diversos espetáculos dentro de um mesmo, manipulam a luz do mago Paulo Cesar Medeiros como se comandassem as próprias línguas. Movimentam em tirar e colocar os figurinos de Fabio Namatame, o dono da alfaiataria teatral, como se permitissem que o tempo passasse ligeiramente por seus corpos. Da-se a impressão imediata de que uma vida passa por aquele palco.
O teatro é a expectativa latente de um público. É a transição do homem para a arte. É o movimento das letras presas no calhamaço de papéis, que chamamos de script. O teatro é Cuoco e a ranhura de sua fala, o resquício de sua rouquidão, prova de muitas falas na arena. Prova de muita areia hasteada por leões.
O teatro é ainda o gozo do diretor e o beijo entre Deus e o Diabo observado pelo autor. O teatro é o ator transando com ele mesmo, tocando-se pela barra da cortina e pelo linóleo preso nos tacos do palco.
“Uma Vida no Teatro” trata do movimento entre vida real e a realidade do teatro, e sua irrealidade também. A astúcia e a prepotência de um ator velho, sua solidão embriagada pelo passado e a passagem de seu ofício ao ator jovem, cheio de disposição e olhar. O ngelo permite ao Cuoco um brilho além daqueles de novela, o ngelo faz a corte, faz o papel do ator que sobrevive de comer letras. O ator é um engolidor de lâminas e é um sobrevivente dessas lâminas. O ngelo Paes Leme tem brilho nos olhos, tem vida, vigor, deixa o palco sem solidão.
Francisco Cuoco dividiu a vida das telenovelas com a vida do teatro, sobe ao palco como se fosse o côncavo e o convexo do próprio ofício. Cuoco é muito maior do que o próprio ofício. É um ator que vaza pela profissão, que encolhe o palco em sua grandeza. Cuoco faz a multidão de seu calhamaço. Ele é o calhamaço de personagens. Cuoco é uma versão quase feminina de Fernanda Montenegro. É a versão masculina do teatro. É a antena sem ruído da TV.
O texto às vezes rasteja num conflito interminável e repetitivo, sem a explanação da atualidade teatral, nem goza do campo vasto dessa arte. Com isso, a direção fica num relento, no gesso do texto. Mas, Cuoco grita pra fora do texto, dá ritmo ao que de vez em quando perde o ritmo.
Os papéis são dirigidos por Reinecke com a gentileza e o rigor de quem movimenta peças de um xadrez. Sem cheque, apenas com a esperança de que o público redesenhe jogadas em suas mentes. Cuoco e Leme, e a aventura de Reinecke tornam a brincadeira séria, quando deixam ao público a cena final. O público é e sempre será a cena final de qualquer espetáculo.
O espetáculo é lindo, tem ritmo e engraçado. A produção é da Ricca Produções, junto a realização da Reinecke Produções Culturais.
“Uma Vida no Teatro” fica em cartaz até o mês de Setembro em São Paulo, no Teatro Vivo. Sextas às 21h30, sábado às 21h e domingo às 18h. Os ingressos custam R$ 50,00 para sexta e domingo e R$ 60,00 para os sábados. O teatro é adaptado para deficientes e a peça faz parte do projeto Vivo em Cena, o qual conheci e dou grande valor.