O amor é muito jovem
TEATRO Com Romeu e Julieta 80, Renato Borghi e Miriam Mehler mostram a vitalidade de uma geração incansável de atores oitentões
Por Eduardo Nunomura
Todos aguardam ansiosos o esperado primeiro beijo de Romeu e Julieta (e que beijo). Tem sido assim há quatro séculos, desde que o bardo inglês William Shakespeare escreveu a que veio a ser uma das mais encenadas peças teatrais do planeta. O casal adolescente está apaixonado e sabemos de cor e salteado como essa tragédia termina. Não há tempo a perder. Só que, desta vez, tempo é uma questão relativa no palco do Sesc Ipiranga, especialmente para Renato Borghi e Miriam Mehler. Os dois estão com mais de 80 anos, mas a juventude de suas interpretações nos papéis de Romeu e Julieta tem a força de congelar o tempo.
A peça Romeu e Julieta 80, dirigida e concebida por Marcelo Lazzaratto, é uma ode ao amor no sentido mais amplo. Sim, trata do amor do jovem de 15 anos, filho único dos Montecchios, pela filha única dos arquirrivais Capuletos, com 14. Mas a montagem faz um tributo amoroso a dois veteranos da dramaturgia e, por extensão, ao teatro brasileiro, maduro por sua história e juvenil pelas condições em que muitas peças ainda são produzidas no País. “Renato e Miriam são de uma geração que sedimentou o teatro. Participaram de peças fundamentais, como O Rei da Vela, Eles Não Usam Black-Tie e Pequenos Burgueses. Daqui a 200 anos, elas ainda serão destaque”, pontifica Lazzaratto.
Foram necessários dez anos para que este projeto ganhasse corpo. Lazzaratto havia pensado em um Romeu e Julieta 70, mas a ideia não avançou além dos risos iniciais dos atores. O tempo passou e a peça ganhou novas simbologias, como a resistência às inúmeras crises (do teatro e do País), a importância do amor em tempos de intolerância e a longevidade.
“O corpo não obedece tanto, mas o sentimento do amor existe. Claro que ele é diferente, porque o frescor da juventude já não há mais, mas o cair de paixão pode acontecer em qualquer idade”, brinca Miriam, 82 anos, que nasceu na Espanha e se formou atriz pela Escola de Arte Dramática de São Paulo, em 1957. Foi casada com Perry Salles, com quem fundou o Teatro Paiol, em 1969, em São Paulo, e participou de inúmeras montagens nos teatros Arena e Oficina. Encenou textos capitais de dramaturgos brasileiros e internacionais, como Gianfrancesco Guarnieri, Nelson Rodrigues, Consuelo de Castro, Maximo Gorki, Max Frisch e Edward Bond. “Como tenho mais de 60 anos de carreira, já passei por todas as fases, mas o teatro sempre sobreviveu. Às vezes, até melhor do que antes.”
Há dez anos, o diretor Lazzaratto sugeriu a peça. Os protagonistas apenas riram
Falar do tempo presente com um Romeu de 80 anos é um sinal de alerta para os mais jovens, que talvez não vislumbrem os riscos que corremos. “Enxergo este momento como tão difícil ou mais do que na ditadura. Com toda essa radicalização e esse politicamente correto que cerceia a arte, que vem de uma fração da sociedade, é muito mais árduo para resistir e combater”, afirma Renato Borghi. “Há uma tendência direitista muito clara e o teatro precisa dialogar ainda mais para expor o risco desse fechamento.”
Recém-homenageado como melhor ator pela Associação Paulista de Críticos de Arte, Borghi ainda se lembra das sessões lotadas, no ano passado, da nova montagem de Zé Celso Martinez Corrêa para O Rei da Vela – 50 Anos Depois, que também ganhou o grande prêmio da crítica. “Parece uma coisa de Deus. Sabia que as pessoas esperavam por aquela peça, mas ser aplaudido antes mesmo de começar a falar faz você rever seus 60 anos de carreira e pensar que valeu a pena.”
Troféus não faltam aos dois, mas a maior premiação é estarem há tanto tempo no tablado e sem planos para a aposentadoria. Borghi já trabalha em uma comédia sobre Molière, que estreia em abril na capital paulista. Ela está aberta a novas propostas. O casal faz parte de uma admirável geração de artistas que continua em plena atividade (leia no box abaixo).
Borghi e Miriam começaram a fazer teatro no fim dos anos 1950. Um pouco antes do golpe civil-militar, ela foi convidada por Borghi para substituir Célia Helena na peça Quatro num Quarto, de Valentin Kataev, e emendou Pequenos Burgueses, de Gorki. Em 1964, formaram par na peça Andorra, de Max Frisch, no Oficina. A clássica montagem sobre o trágico destino de um judeu diante da truculenta invasão de nazistas na cidade fictícia de Andorra serviu para Zé Celso e sua trupe se posicionarem contra o início da ditadura no Brasil. A peça rendeu o primeiro Prêmio Molière a Borghi. “Zé Celso achara em mim a parceira ideal para o Renato, já que ambos somos baixinhos e nos entendemos às mil maravilhas, tanto naquela época como agora. Renato é um dos atores com quem mais contracenei e espero contracenar muito mais ainda”, relatou ela para Vilmar Ledesma, no livro Sensibilidade e Paixão, publicado em 2005.
A cenografia quase minimalista reforça a entrega dos atores ao poder do texto de Shakespeare
Versáteis, os dois atores transitaram com sucesso também pelo cinema e pela televisão. Para viver a conhecida história de Romeu e Julieta, e cientes de que o tempo cobra a fatura, Borghi e Miriam apostaram em uma interpretação que se ancora na essência do teatro shakesperiano. “Claro que dá medo. O fato de o personagem ter 15 anos e eu, 80, me fez me entregar à força das palavras e dos versos de Shakespeare”, explica Borghi, carioca que se formou em Direito e nos anos 1960 integrou o movimento Oficina, o grupo ligado ao Centro Acadêmico 11 de Agosto.
A montagem atual de Lazzaratto procura explorar a literalidade do texto clássico de uma forma menos convencional, nada menos que adequado diante da transgressão de ter como protagonista um casal octogenário. A famosa cena do balcão, em que Romeu tem de escalar para se encontrar com Julieta, é traduzida na simples disposição de duas cadeiras, uma de costas para a outra. Borghi e Miriam dobram, singelamente, um dos joelhos para superar o “obstáculo”. A cenografia resume-se a um tapete como uma das paredes e a uma grande mesa, de múltiplas funções, inclusive a do caixão onde repousará Julieta e onde, antes, ocorrerá a luta de facas entre Romeu e Teobaldo.
Outro recurso criativo da peça é a presença de apenas mais dois atores, Carolina Fabri, de 38 anos, e Elcio Nogueira Seixas, de 45, que se revezam nos demais papéis. Ora são Frei Lourenço e a ama, confidentes de Romeu e Julieta, ora fazem as vezes de Capuletos, Montecchios e outros personagens. Sem ênfase na caracterização, exigem atenção do espectador, dificuldade superada após alguns minutos de encenação. Salta aos olhos o respeito que demonstram para com os atores principais. Parecem querer ouvir a mensagem deles.
“O teatro é a nossa grande tábua de salvação. Romeu e Julieta é uma mensagem de amor tão grande em meio a um mundo de tanto ódio, de tantas coisas terríveis acontecendo, e precisamos passar que existe o amor entre nós, não só entre um homem e uma mulher, mas entre nós, seres humanos”, conclui Miriam. •
CRÉDITOS DA PÁGINA: Matheus Jose Maria, Rogério Fernandes/Globo, Andre Seiti e Ligiane Braga
artes cênicas
Aos 80 anos, Renato Borghi e Miriam Mehler vivem Romeu e Julieta
Lenise Pinheiro/Folhapress | ||
Miriam Mehler e Renato Borghi durante ensaio da peça “Romeu e Julieta 80” |
Já havia uma admiração, desde os anos 1950. “Eu era fã dela”, lembra o ator Renato Borghi sobre a colega Miriam Mehler. Os dois começaram no teatro quase juntos. Ele, em 1957. Ela cerca de um ano antes, ainda em produções não profissionais.
No palco, a admiração e amizade de seis décadas se transformaram em paixão. São os atores que protagonizam “Romeu e Julieta 80”, que estreia nesta quinta-feira (18) em São Paulo. Borghi, 80, e Mehler, 82, vivem os enamorados ainda jovens.
A versão da tragédia shakespeariana, adaptada e dirigida por Marcelo Lazzaratto, também nasceu antes, há aproximadamente dez anos –quando a peça se chamaria “Romeu e Julieta 70”.
A ideia era juntar os veteranos, amigos de longa data, para celebrar a história dos atores e do teatro. E também, de certo modo, analisar o que significa o amor e a paixão em diferentes idades.
“Um casal de 80 anos fazendo Romeu e Julieta, que têm apenas 14 e 15, leva uma força para a convenção simbólica”, afirma Lazzaratto.
“Acho que em tempos tão literais, como esses em que a gente está vivendo, em que muitas pessoas têm dificuldade de estabelecer relação com o simbólico, essa convenção é muito necessária.”
RIVAIS
Apesar da inversão simbólica, a história –escrita por William Shakespeare no final do século 16, baseado na obra do poeta inglês Arthur Brooke– está quase toda ali: filhos de famílias rivais da cidade de Verona, os jovens Romeu Montecchio e Julieta Capuleto se encontram num baile de mascarados e acabam se apaixonando.
Por seu amor proibido, casam-se em segredo, mas a rixa entre os Montecchio e os Capuleto coloca mais obstáculos na relação dos dois.
Borghi e Mehler dividem a cena com Carol Fabri e Elcio Nogueira Seixas, que se revezam nos demais papéis da trama. Com um figurino neutro, cinza e composto de algumas camadas de pano, transformam-se nesse ou naquele personagem, mudando o tom de voz e os gestos.
‘ENSAIO’
O cenário remete em parte a uma sala de ensaio, com uma grande mesa sobre o palco –como as mesas de leitura feitas no início de ensaios de peças. Ao fundo, uma tapeçaria de fios grossos entramados, quase inacabada. Uma alusão tanto à época shakespeariana quanto à emaranhada trama do espetáculo.
Lenise Pinheiro/Folhapress | ||
Renato Borghi, Elcio Nogueira Seixas, Miriam Mehler e Carol Fabri em “Romeu e Julieta 80” |
Aqui, Romeu e Julieta surgem com a feição mais velha, mas com o espírito juvenil. Os personagens se apoiam na cumplicidade dos dois atores, que dividem a cena em espetáculos desde os anos 1960. “Uma confiança”, como define Borghi, ou “uma coisa íntima”, segundo Mehler.
“Nos interessava esse casal de 80 anos e 60 de história do teatro”, explica Lazzaratto. “E que foi um par romântico lá em ‘Andorra’, em 1964 [em montagem do Teatro Oficina para o texto de Max Frisch]. Acho que tudo isso consagra a questão da teatralidade.”
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ROMEU E JULIETA 80
QUANDO estreia qui. (18), às 21h; temporada: sex. e sáb., às 21h, dom. e feriados, às 18h; até 18/2
ONDE Sesc Ipiranga – teatro, r. Bom Pastor, 822, tel. (11) 3340-2000
QUANTO R$ 9 a R$ 30
CLASSIFICAÇÃO 12 anos
Em Verona, na Itália, por volta de 1600, a rivalidade entre os Montecchios e os Capuletos acentua-se e os conflitos estendem-se a parentes e criados, apesar do apelo do príncipe pela paz. Num baile de máscaras na casa dos Capuletos, Romeu Montecchio conhece Julieta Capuleto. A paixão é mútua e instantânea. Ao descobrir que pertencem a famílias inimigas, os dois se desesperam. Resolvem casar-se secretamente. Como todos já sabem, o destino do amor entre Romeu e Julieta seria trágico. Nesta inusitada montagem do clássico de Shakespeare, os jovens Romeu e Julieta serão interpretados pelos consagrados atores Renato Borghi e Miriam Mehler.
Ficha técnica
Direção, adaptação e iluminação: Marcelo Lazzaratto
Elenco: Renato Borghi, Miriam Mehler , Elcio Nogueira Seixas e Carolina Fabri
Direção de Arte: Simone Mina
Trilha Sonora: Daniel Maia
Em Verona, na Itália, dois jovens se apaixonam e são condenados por suas famílias, que são rivais. Decididos a permanecer juntos, fogem. E, em meio a uma série de desentendimentos, o amor se transforma em miséria.
A mais célebre tragédia de Shakespeare é tão clássica que contar o fim não é spoiler. A novidade da montagem de Marcelo Lazzaratto, que estreia na quinta (18), no Sesc Ipiranga, é que os jovens apaixonados são interpretados por dois veteranos do teatro, Renato Borghi e Miriam Mehler, que comemoram 60 anos de carreira.
O título, “Romeu e Julieta 80”, faz referência à idade dos dois atores: Renato tem 80 anos e Miriam, 82. A história, no entanto, continua a mesma, sem menções à diferença de idade entre intérpretes e personagens.
Pensada há dez anos pelo diretor, a peça é uma homenagem à carreira de Renato e Miriam, que interpretaram diversos casais nos palcos. A intenção, segundo ele, era mostrar que “o amor pode se manifestar em qualquer momento, em qualquer lugar, em qualquer idade”.
Para acompanhar as desventuras dos jovens Montecchio e Capuletto, os atores Elcio Nogueira Seixas e Carolina Fabri interpretam todos os outros personagens da trama, como Mercúrio, Páris, Teobaldo, os pais e o boticário.
Sesc Ipiranga – teatro – R. Bom Pastor, 822, Ipiranga, tel. 3340-2000. 200 lugares. Sex. e sáb.: 21h. Dom.: 18h. Estreia 18/1. Até 18/2. Ingresso: R$ 9 a R$ 30. Ingr. p/ sescsp.org.br.